sexta-feira, 30 de maio de 2008

Deixo estar

Deixo estar, pois deixando acontece o que se tece, o que se fia e se confia. Deixo tempo para ver tanta beleza, já que o tempo da beleza é permanente e somente exige o pouco tempo que se tem ou se inventa.

Pés na terra. A mim não interessa a calmaria e a tormenta que se pode recriar. São do mar esses fenômenos estranhos.

Deixo estar, porque deixando acontecem as surpresas que conhecem as entranhas, artimanhas do destino, armadilhas do acaso e que, caso as soubesse de antemão, não fluiriam.

Deixo estar porque o que deixo é mais completo, lícito, livre, sério. Assim é o bem estar que se tem visto.

E assim, se está bem, então é só o que se tem que forma o fato. É nesse ato, combinado em silêncio, sem barganha, acordado em tantos termos, sem contrato, que deixo estar de fato e vou inteiro.

Aprendizado

Foi o meu melhor aprendizado. Aprendi a entender ao invés de supor, a ler ao invés de compor. Aprendi a pluralidade que trago em mim, a multiplicidade que não vê fim, a realidade que é, ainda assim, surpreendente.

Aprendi a olhar de frente e ver, a um só tempo, a alma da gente abraçada e espreguiçada, distendida e recriada, da forma como Deus recriaria o universo se, para tal, se dispusesse.


Ah, se o criador fosse criativo, criaria o universo a partir de uma cópula infinita, feliz, bonita, sem vergonhas ou vícios, uma entrega total das energias.Criaria os dias sem horas, as horas sem pontualidade, criaria nem tempo nem idade, mas a mescla dessa tola experiência. Fundiria religião e ciência, ansiedade e paciência, ousadia e prudência.

O criador, meu amor, nos criaria neste exato momento, quando me sento à sua frente e, a par de todos os desejos, somos apenas parceiros, talvez os primeiros a chegar nessa maratona insana.

Posso, agora, dizer que te amo.


quarta-feira, 28 de maio de 2008

Tempo

Por um certo lapso de tempo ou, dizendo melhor, por todo o lapso do tempo, vai se entendendo fenômenos que às vezes passam despercebidos. O clima é um deles. As pessoas reclamam, se lamuriam do frio e do calor, do sol e da chuva, sem se aperceber que essas coisas são cíclicas. O clima ameno vai e vem. O saber do clima, quando aprendido, fica. Filhos nascem e crescem de forma totalmente dependente. De repente... pimba! Estão por aí a cuidar de suas vidas, dão nos cascos, se vão, cumprindo a regra mais certa e justa da evolução e nós, continuamos a vê-los como crianças inocentes, dependentes.

O tempo passa por nós desapercebido. Mal começou e já termina. O elevador, no entanto, demora demais a chegar. A noção tão relativa dos segundos, horas, dias, meses, nos faz fragilmente humanos. Que tosca interpretação. Esse relógio bate as horas de forma arrevesada. Um dia, às vezes, é nada, mas um minuto pode ser a diferença entre o parto e o luto. Nesse entremeio, colecionamos na memória o que se chama de história. Não a história dos livros, dos heróis, dos contos de fadas, das bruxas malvadas e políticos iguais, mas a história de nós.

Ao longo do tempo imensurável há, sempre, um tempo viável que nos escreve e apaga, que nos castiga e afaga, que nos ensina a vida pela lição mais doída e, tantas vezes, ao invés de estar atentos a cada um dos instantes, todos aproveitáveis, escolhemos os lamentos pela oportunidade perdida de momentos memoráveis.

A vida, meu bem, não perdoa os distraídos. Não há nela uma seção de achados e perdidos.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Ela pensou que me amava

Ela pensou que me amava. Foi coisa da juventude, que desafiou a finitude de tudo. Afinal, qualquer coisa o tempo apaga. Após trinta e tantos anos nos reencontramos. Ela lembrou que pensou que me amava e se entregou ao seu sonho. Nessa entrega veio toda, não poupou nenhum afago. Fez tudo o que havia aprendido nos anos em que não se guardara, mas aguardara.
Me ofertou um carinho antigo, deu-se por inteiro após todo esse tempo a quem um dia julgou ser o primeiro a merecer seu corpo. Revelou o que era bom apenas como mistério, veio inteira e, enquanto ela gozava, eu, tolo, levava a sério.

Pesadelo

Calo em imagens toscas, idéias desbaratadas. Sou eu meu próprio veneno, imagens mal acabadas, fantasmas desnecessários, inaptidões, medos vários e uma frágil memória do que aprendi de correto.

Silenciam-me pequenas visões menos que intuídas, imitações de feridas que não tenho nem deveria, mas me roubam as nuvens brancas e me impõem tormentas indescritíveis, violentas para as quais cerro os olhos, fecho a fronte, enrugo a testa por que, por certo, não é esta a alma que em mim habita, pois que esta não acredita nem ao menos em si mesma, quem dirá nessa desdita.

O anverso dos versos ( Dedicado a Ivone F. S.)

É no anverso dos versos que se encontram os diversos frutos dos maestros, brutos e benditos, assim como foram transcritos teus pensamentos exatos e imediatos. Não tema teus escritos, pois que desfazem os mitos e os torna factíveis, inteligíveis, belos em sua essência enquanto plenos da tua impercebida, mas profunda consciência

Me engano

Me engano sem enganos. Foi assim ao longo dos anos, por todo o tempo em que passei vivendo ou passei sem ter passado o que se transformou em passado.
Se não me engano, ainda às vezes me engano, e faço imiscuir um plano indecifrável na vida inexorável que se tornará o mais provável dos resultados esperados. Mas vão-se os vãos, as frestas, as penúrias e as festas, as alforrias e as manias, tão maduramente aceitas por quem me conhece e aceita.
Portanto a gente se ajeita. Há, parte a parte, sonhos irrealizados, minutos desvividos, sonhos desvalidos, esquecidos, desnutridos até de lembrança. Ainda assim, a gente dança. Dança quem lembra da dança, da esperança da substância feita apenas do provável, mas jamais do realizado.
Portanto é assim, começo meio e fim são a mistura do treco que estamos vivendo agora, e perguntando atônitos:
Isso é hora???

Lolitas?

Lolitas? Foi se o tempo e a oportunidade. Mulheres? Há algumas próprias para a minha idade, vindas de minha mocidade, ainda bonitas, mas jamais comparáveis com Lolitas. Mulheres amadurecidas são resumos detalhados de nossas vidas. Nem são parecidas, apenas e tão somente a germinação da semente. Serão a vera explicação se um dia eu for tomado por demente!

Hoje não!

Hoje, eu até faria um poema, com imagens reais, triviais. Mas o que vejo são figuras abissais, profundas e irreais, de monstros e colossais desvios de conduta genética e lógica.

Eu até queria escrever um poema, uma poesia pequena, doce, de arrancar, quem sabe, lágrimas menores e entendimentos surpresos. Mas meus pesos estão a me atar pés, mãos digitalizadoras, pontas de dedos que parecem sempre intuir meus medos e se calam numa verdadeira artrite existencial. Não faz mal.

Se eu queria e não o fiz, é porque me faltou a raiz, o sopro, a inspiração menor ou, até ela tenha vindo e eu não a tenha percebido.

Fica o registro do inusitado. Agora, só ficarei do meu próprio lado a esperar oportunidades mais claras. Essas, que nos exigem os cantos das Iaras, nem pensar!

Calar-me?

Calar-me sem que seja imperioso? Nem por nada me calaria, pois que sou zeloso com o que tentaria falar-te, dizer-te, afagar-te. Destarte, nem por nada me calaria, apenas buscaria o fim da calmaria, o renascer de qualquer brisa, qualquer vento e ficaria atento à tua mais sutil resposta, ainda que indisposta ou inoportuna. Minha ação seria a mera gatuna de teu sentimento mais profundo e, embora meio parvo não tenha eu condição de avaliá-lo, me conheces, sabes o tamanho e a força da minha prece de ateu e sabes que eu converso com arcanjos em seu próprio dialeto, sabes que falo com o próprio Jeová, um deus que não há, segundo o que ele mesmo me disse. Sabes que tenho os pés, como raízes, fincados na terra e a mente, esta divergente, voa distante, fala-te falácias faz-te refém de imagens inimagináveis, possíveis talvez, mas sempre as toscas imagens que, comportadas, esperam a vez.

Viu o que você me fez?

Boa Viagem

Vá com Deus, tenha juízo, comporte-se bem e não vá fazer nada que me entristeça. Se fizer, não me conte. Se contar, não sorria. Se sorrir, não me olhe. Se olhar, que não seja nos olhos, pois, afogados, não serão uma visão agradável.

Da Sacada

Sento-me na sacada como quem não quer nada, inocente. Entre o gole e a tragada olho p’ro céu e nada. Nenhuma estrela presente. Apenas um tico de lua crescente, dependurada como uma unha polida, branca, bem cuidada, a ponta do dedo de Deus a apontar o poente. E aponta, insistente, o dedo que indica o caminho do horizonte.

Logo se esconderá atrás dessas estruturas, dos prédios, das coisas duras que nos proíbem espaço.

Das ruas, não vejo nada. Só lá adiante uma nesga advinha o cruzamento com todo o seu movimento. De resto tudo parece uma calma imaginada. Qual nada! A cidade não relaxa! A gente que, vendo pouco, acha que o momento é de repouso. Não ouso me enganar dessa forma.

Sei que a regra, a norma, é estar obscurecido nesse momento dividido. A cidade pulsa, eu não. E assim, sexto andar, penso meu solo sereno, tão remédio quanto veneno, como o fará a dose.

O vento fresco me espanta. Saio da sacada, recolho o copo e o cinzeiro, trago p’ra dentro de casa os olhos que guardam um horizonte normal, memorado, um espectro melhorado do que vi, do que lembrei, do que pensei, no instante efêmero.

Coisas desse gênero me fazem feliz, eu sei.

Não ouso calar a cidade

Não ouso calar a cidade de seus gritos blasfemos e inoportunos. Nem ouso gritar como ela da varanda, da janela, da passagem qualquer que nos comunica. Apenas ouço o silêncio experiente dos fícus, dos umbus, dos ipês, que de há tanto tempo filtram e depuram os rugidos e os hálitos da cidade e, em sua ingênua maldade, nos desnudam enquanto nos fazem ocultos.

Também não ouso invocar a gente boa e passada, das notícias que nos surpreendem e amargam, nem também as almas puras que, acidentalmente, deixei de conhecer a tempo e de cujos conselhos e atenção ainda preciso e prescindo enormemente.

Não tenho, em essência, ousadia nenhuma que faça mover uma folha, posto que as folhas se movem por si no outono cansado e, assim, não me cabe o direito discutível da interferência.

Declaro, e apenas declaro, um intenso e legítimo amor extemporâneo que nada pede, nada exige, nada condiciona senão a beleza inexorável intrínseca a si próprio e, por ser de tal forma inevitável, resiste, permanece e reconhece, resignado, sua incapacidade de germinação imediata que, ingrata, se traduz como um espelho.

Então, envergonhado, busco o sono como quem, errando o passo, caísse justo no terror de um simples susto e, por estar só, procurasse o próprio colo.

Dois Anjos

Meus anjos da guarda são dois. Um fala agora, o outro depois.

Este que agora fala e toma a mão e a caneta, garante um momento justo, com texto de opereta e junta rimas a esmo ou aforismos vulgares, que vêm de tantos lugares que nem os anjos se lembram, mas tocam em frente o processo.
- Escreva-se outro verso!
E minha mão obedece cegamente, comportada, e mesmo que não diga nada, no fim o texto me intriga.

O outro anjo me escuta, pondera, discute comigo, aconselha como amigo a escolher cada palavra, evitando o perigo de registrar cegamente as coisas que vêm à mente e comprometem depois.

Eu tenho muitos amigos, mas anjos da guarda, só dois.

Um deles volta à carga e me mantém escrevendo e fumando e bebendo. Sou só o seu instrumento de mensagens imediatas, de conclusões provisórias que, se não contam histórias, também não são um lamento.

Mais uma vez, protegido, retorno à consciência. Deus salve a providência de me dar tais companhias. Tenho uma história simples, uma família normal, tenho amigos, colegas e um afeto especial. Tenho coisas diferentes, às vezes incompatíveis, milhares de neurônios e um violão meio velho que comigo se indispôs.

Tenho um milhão de motivos, mas, anjos da guarda, só dois.

Rogo pragas criativas: “pedaço de asno”, xingo. No sábado ou no domingo e às vezes pela semana, digo que vou à merda e ofereço carona. Mas me comporto direito. Se me falhar a caneta, levanto e vou à gaveta. Paro no bar, me abasteço, me dou tudo o que mereço e não reclamo depois.

Eu tenho muitos defeitos, mas anjos da guarda, só dois.

Me rendo à fadiga do corpo, à meditação necessária. Paro, limpo a área e vou descansar, finalmente. Acendo o último cigarro, procuro o último gole. Viver assim, não é mole, mas tudo sempre se encontra no lugar onde se pôs.

Vamos dormir. Boa noite.
Eu e meus anjos. Os dois.